quarta-feira, 31 de janeiro de 2024
A propósito da Rádio
A propósito da Rádio e de tudo o que significa na vida das pessoas, na sua capacidade de estimular o apelo ao imaginário, um filme recente da dupla Renaud Després e Larose Ana Tapia Rousiouk.
O Sonho e a Rádio
"A Rádio é – na sua origem – um meio de comunicação, um
meio de transmissão e, de facto, na vida artística e social, a representar este
papel primário. Mas este meio de transmissão muito depressa deu à luz uma nova
arte, uma arte original. Porquê? Porque tornamo-nos cientes do poder enorme da
sugestão que caracteriza a voz carregada pelas ondas de som e que entra na intimidade
de um ouvinte. Esta voz que de repente abre amplamente as portas da imaginação.
Com a Rádio as pessoas aprenderam não apenas a permitir a elas mesmas serem
cativadas pelo entretenimento das vozes mas – guiadas por elas – a entrarem de
forma segura num universo imaginário onde tudo se torna possível. Num mundo
onde cada ouvinte é o metteur en scène
livre da gravidade, o criador sem limites, o demiurgo."
A imaginação, o bem e o mal, uma conversa na Maratona de Leitura, festival literário organizado pelo Município da Sertã através da Biblioteca Padre Antunes.
(…)
As pessoas
estão absolutamente desassossegadas, estão absolutamente inquietas. Não gostam
do que fazem, não valorizam o que fazem, é rara a pessoa valorizar. Hoje uma
pessoa valorizar o seu trabalho, quer dizer “olha, desculpa, eu agora não vou
poder responder durante uma hora”, é visto como algo indelicado. Isto é
absurdo. Há um verso do Rimbaut que sempre utilizei que é: “Por delicadeza
perdi a minha vida”.
(…)
Não é possível eu imaginar se eu estiver sempre virado para fora. Como é que eu posso imaginar se estou sempre a responder a coisas? A imaginação é precisamente uma suspensão do que estou a ver, uma suspensão do mundo. Agora, de repente, eu vou suspender esta viragem para o exterior. De repente eu vou pensar em qualquer coisa independente do que estou a ver. Os surrealistas defendiam precisamente a cegueira como meio de poder imaginar. Porque se a pessoa estivesse a ver não consegue criar imagens inexistentes. Não é por acaso, por exemplo, que quase todos os profetas são cegos. É claramente uma mensagem. A única hipótese de se ver qualquer coisa de diferente, imaginar o futuro, ver qualquer coisa absolutamente invulgar, é suspender a visão normal. Nós podemos fazer treinos de imaginação, podemos fazer uma série de coisas, mas se nós não tivermos uma disponibilidade física e corporal para suspender a infinidade de estímulos que nós estamos sempre a receber, nós não vamos imaginar. Não é possível.
(…)
Hoje as pessoas têm um medo absurdo do tédio, do aborrecimento.
(…)
O problema do aborrecimento é um problema individual. Tem de ser corrigido individualmente. E se alguém se aborrece sozinho é porque é um tonto. É porque não tem cabeça para se acompanhar a si próprio. É isso. Alguém que se aborrece é o aborrecido. Ele próprio é um aborrecido. Porque se um tipo tem um imaginário interessante não se aborrece. Está com ele próprio, está com um tipo que pensa, que pensa outras coisas. Mas nós estamos tão virados para fora, tão obcecados com os miúdos não se aborrecerem ou os adultos, que estamos numa espécie de sociedade da distracção, que é uma sociedade não imaginativa, claramente. Uma sociedade de resposta.
Gonçalo M.
Tavares
Em momentos
em que a vida está muito agitada é muito difícil a pessoa abstrair-se dela para
criar alguma coisa.
(…)
Para se mergulhar na escrita é preciso uma abstracção total do que temos à
volta e a imaginação também é uma coisa que leva muito tempo. Porque se nós
estivermos a inventar uma narrativa, um capítulo, um romance, nós precisamos de
tempo suficiente para nos aclimatarmos ao texto. Isto, diariamente.
Se tivermos uma sociedade virada para isso, de termos de estar sempre
entretidos, termos de experimentar tudo, etc...
(…)
Esta coisa de se experimentar tudo como forma de passar o tempo, implica que se
perca a capacidade de se fazer qualquer coisa de diferente do tempo. Se nós
pensarmos em grandes obras, por exemplo «A Guerra dos Tronos», que é uma
narrativa enorme com personagens muito complexas, é uma coisa que só é possível,
que vem da cabeça de um homem que vive numa cabana no meio da neve. E, portanto,
tem de estar totalmente voltado para aquilo, viver dentro daquilo, e não pode
ter esta vida de estar a jantar com os amigos todos os dias, ou ir a treinos de
uma coisa qualquer ou perdido em estímulos de outra ordem. E eu acho que tudo o
que implica ir além da banalidade implica também o silêncio e a solidão, nessa
ideia da escrita, implicar que o escritor esteja sozinho a fazer alguma coisa
durante muitas horas. A força psicológica para estar sozinho durante quatro ou
cinco horas. Eu acho que isto é fundamental para a escrita.
(…)
Funciona a questão da estrutura dentro do próprio dia para permitir esse espaço para a imaginação florescer. Ou seja, uma estrutura do quotidiano que, claro, temos coisas do dia-a-dia para resolver, mas que implique durante três ou quatro horas, o que seja, que se esteja totalmente blindado à vida que existe, para podermos mergulhar na vida que estamos a inventar.
Ana Bárbara Pedrosa