segunda-feira, 28 de março de 2005

EM SINTONIA


Todos os dias procuramos uma sintonia. A tal busca por um posto mágico, de que fala Sam Shepard, que nos satisfaça os anseios das nossas vidas. É o que procuramos na rádio quando a sintonizamos a cada dia. Em sintonia é o nome de um espaço semanal de uma hora de duração na Antena2. António Cartaxo, radialista de longa data, a maior parte do tempo na rádio pública portuguesa (com passado no serviço internacional da BBC em Londres, e uma breve passagem pela TSF nos inícios dos anos 90), é o arauto desta sintonia. A voz de António Cartaxo é inconfundível. Diria mesmo invulgar. Suave, segura, ondulatória. Um tanto ou quanto encantatória. É com toda esta envolvência e classe, num misto de simplicidade e sensibilidade, que entramos Em Sintonia com António Cartaxo à hora do almoço aos domingos (13:10 / 14:10), com repetição à hora de jantar (20:00) às quintas feiras. O horário de repetição não é o mais favorável, embora isso não comprometa o programa, que a essa hora de regresso a casa ainda consegue captar audiência em trânsito. Mas este, tal como outros programas da Antena2, não é para ouvir no carro. Não de preferência. A subtileza do registo de António Cartaxo é para fruir em silêncio. Só em ambiente sossegado, longe de barafunda, se atinge a magnitude total desta sintonia. Melodias de sempre e para sempre. A música clássica apresentada e explicada por António Cartaxo despe a aura de distanciamento e de uma certa frieza. Torna-se quente e próxima de nós. Cartaxo é um comunicador singular. Ora nos expõe à intensa luminosidade de Johann Sebastian Bach – para muitos o melhor compositor de sempre da história da música - ora nos oferece a actualidade vertente da obra de Erik Satie, um dos compositores mais destacados do impressionismo francês a par de Maurice Ravel ou Claude Debussy, ora ainda nos coloca o dilema contemporâneo em como pronunciar correctamente os nomes dos compositores clássicos. Como deveremos pronunciar o nome do compositor da Paixão Segundo S.Mateus? Johann Sebastian Bach (com todo o ruir teotónico do som germânico mais puro e enraizado), ou simplesmente (e à portuguesa) João Sebastião Bach? Diremos Dvorak (devoraque) ou pronunciar correctamente Dvorak (devorjaque)? Afastados – e bem - que estamos das práticas espanholas e francesas, que "nacionalizam" as pronúncias e os nomes próprios, ficamo-nos pelo saudável bom senso. Nem Johann Sebastian Bach nem devoraque! Somado a isto, uma outra pertinência. Como é correcto dirigirmo-nos a personagens consagradas na história universal, sejam elas da música, da política ou das artes? É O Camões ou Camões? O Churchill ou Sir Churchill? O Picasso ou apenas Picasso? António Cartaxo, com a mestria que lhe é inerente, explicou tudo isto e muito mais Em Sintonia.
Até 10 de Abril, o papel e o peso dos sinos na música clássica.



DE OLHOS BEM ABERTOS


De olhos Bem Abertos é a outra aparição de António Cartaxo na Antena2. É um apontamento diário, entre as 09:30 e as 10:00 nas manhãs de segunda a sexta-feira, no espaço Acordar a 2. Repete na Antena1 antes da meia noite, também de segunda a sexta.
Uma crónica diária, de assunto variável dentro do universo da música clássica, mas sempre revestida de alguma pertinência ou curiosidade. As histórias podem ser burlescas, epistolares, sentimentais, profissionais, emocionais, ou de qualquer outra índole e são, dentro do vasto universo em que se inserem, infinitas. Cartaxo sabe disso, pelo que não tem pressa em contá-las. Assim é e assim seja.
Note-se nas melodias de início e fecho da crónica De Olhos Bem Abertos. O mistério, não sem alguma apreensão, na abertura, como que nos precavendo da incógnita que aí vem e o fecho com uma deliciosa e optimista valsa de Sergei Prokofiev, como se nos confortasse com uma espécie de happy end, que não desfaz a derradeira obra de Kubrick.
De todo o firmamento de talentos que pululam na Antena2, António Cartaxo é, talvez, a estrela mais cintilante.

segunda-feira, 21 de março de 2005

SINATRA DANÇA!


Há cerca de dez anos abri o jornal e vi uma foto a preto e branco de José Duarte. Na altura, o que me deixou em tons de cinzento não foi o ar espantado - pelo menos assim mo pareceu - da figura do homem que já conhecia de vista, talvez da sua passagem (de boa memória, diga-se) pela RTP. Foi antes a notícia que acompanhava a foto. Algo do género: "Administração da RDP (ou direcção, já não posso precisar) acaba com a dança da menina". A notícia caiu em mim como quem lê o obituário.
"A menina" era a minha companhia de já algum tempo aos domingos à noite durante duas horas (22:00/00:00) na Rádio Comercial e depois na RDP -Antena 1. O mestre de cerimónias: José Duarte.
«A Menina Dança?», assim se chamava (chama) o programa, desfilava clássicos e não só do chamado Jazz cantado, do Swing, das grandes orquestras até meados do século XX, sempre sem esquecer as grandes vozes. A este cocktail José Duarte juntava estórias dessas músicas e dos seus intérpretes.
Escândalos, vidas sentimentais, existências fatais e afins. O showbizz desses tempos idos tinham um narrador à altura, que falava com conhecimento e autoridade. Um dos episódios que guardo mais vivamente na memória foi a do rapto do filho de Frank Sinatra.
A narração cuidada e comentada de José Duarte "mostrou-nos" todo o folhetim que por acaso até teve um desfecho feliz. Mas muitos outros episódios foram relatados pelo autor do programa, também ele um homem cheio de história.
Sinatra é uma paixão, até mesmo uma fixação assumida - e bem - por José Duarte. Felizmente não está sozinho. Tal como ele próprio já disse em antena, "Sinatra é imortal".
Há mais ou menos dois anos, na remodelação da Antena1, a menina voltou a dançar. Agora à segunda-feira, da meia-noite à uma. Não é a mesma coisa.
Penso que era mais proveitoso quando o salão de dança estava aberto por duas horas nas noites de domingo. Mas hoje em dia o futebol ocupa muitas noites e o domingo na rádio - pelo menos à noite - já não pode ser o que já foi.
Acresce a isto tudo um pormenor importante: é que, a nível nacional, só neste programa é possível ouvir a voz de Sinatra passar na rádio portuguesa. Mas o toque inimitável de José Duarte, a classe e o saber, continuam lá. E continuam também os diálogos (na verdade monólogos) de José com a "menina" (Edite Sombreireiro). E continua a soar a voz de Sinatra. A um tempo no final de cada emissão, por vezes no início, por vezes no início e no fim. Sinatra não só é imortal como está presente em todas as sessões em que a menina dança. Sinatra também dança, sempre. Com ela.
A presença recorrente de Sinatra pode ter um propósito mais ou menos evidente, como por exemplo nas comparações com o novel prodígio canadiano Michael Bublé, ou então na relação de Sinatra com Hollywood, mas é sempre convidado para o salão em que a menina responde à pergunta:
- A menina dança?
- Só canções de Sinatra. 

Vou até um pouco mais longe, e dizer que José Duarte poderia fazer deste programa uma emissão só com Frank Sinatra. Por um tempo. Não se perderia nada com isso. E cada vez que surgisse a pergunta chave, a menina lá exclamaria sem nenhuma hesitação:
- Só com José Duarte! 

(José Duarte é também autor do espaço "Cinco Minutos Jazz" do qual falarei futuramente)



Os propósitos deste blogue


Apenas um. Dar relevo ao que (ainda) vale realmente a pena não perder de ouvido no espectro radiofónico português.
É o desejo de partilha do prazer absoluto de escutar rádio. Sempre através de uma perspectiva pessoal de um ouvinte que faz rádio, que é aquilo que sou. E, adaptando um pouco do magnífico texto de Sam Shepard que inaugurou este espaço, todos nós ansiamos por um posto mágico!

quarta-feira, 2 de março de 2005


Conheci um guitarrista que dizia «a minha amiga rádio». Sentia um parentesco menos com a música do que com a voz da rádio. A sua qualidade sintética. A sua voz única, distinta das vozes que a atravessam. A sua capacidade de transmitir a ilusão de gente a grande distância. Dormia com a rádio. Falava para a rádio. Discordava da rádio. Acreditava numa Terra Longínqua da Rádio. Como achava que nunca encontraria esta terra, reconciliou-se consigo mesmo limitando-se a ouvir rádio. Acreditava que tinha sido banido da Terra da Rádio e condenado a errar eternamente pelas ondas sonoras, ansiando por um posto mágico que o devolvesse à sua herança há muito perdida.

22/12/79 Homestead Valley, Ca.

Sam Shepard in Crónicas Americanas