segunda-feira, 25 de abril de 2005
A NOVA SENHORA
Aquando o 30º aniversário do 25 de Abril, em 2004, levantou-se – com toda a razão de ser – uma polémica em relação à tentativa de retirada da letra "R" na palavra "Revolução" em troca da palavra "Evolução". Passados 31 anos, Revolução sim, Evolução talvez. Depende das áreas que queiramos analisar. Na rádio, Revolução não, Evolução ainda menos.
Até há pouco tempo, ainda era possível ouvir na rádio os cantautores de intervenção que por via da história ficaram ligados à revolução. Quase sempre acontecia no dia 25 de Abril (e até mesmo no 1º de Maio). Era previsível que assim fosse, pelo menos nesse dia, ouvir-se com toda a naturalidade canções de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Luís Cília, Manuel Freire, etc. Não constituía surpresa que nesse dia passassem na rádio "Grândola Vila Morena", "Queixa das Almas Jovens Censuradas", "Trova do Vento Que Passa", "Pedra Filosofal", entre muitas outras canções.
Era previsível, era esperado, não era surpresa, mas era necessário. Chegados às três décadas do dia que mudou Portugal, já é quase impossível ouvir aquelas canções que ficaram ligadas à revolução. Não era previsível, nem esperado. Foi uma surpresa e não era necessário.
O que fez mudar – por um dia no ano – o saudavelmente previsível e o naturalmente necessário? A "evolução"? A mudança de mentalidades? Nada disso. Apenas a formatação das rádios e a ditadura desse instrumento (?!) chamado "play-list". A "lista" corta a direito e não contempla a diferença neste dia diferente. Faz tábua rasa da história e da memória. Como formato importado que é, não se adapta às realidades de cada contexto especifico em que é implementada. É um acto sofisticado de censura silenciosa, camuflada.
Pouco ou nada visível, mas que existe e persiste em surdina. Chamam-lhe "estratégia"; marketing; "leis do mercado"; "livre comércio"; adopção de "formatos de sucesso"; etc... eu chamo-lhe censura. Uma forma nova de censura, difusa, inconcreta, sem cara nem corpo físico, logo diferente das formas de censura clássicas que ficaram conhecidas pelas piores razões em Portugal durante 48 anos.
Um radialista que tenha um disco novo (e, ao contrário do que as rádios "mostram", há discos novos e bons todos os dias!) e o queira partilhar com os ouvintes, chega à rádio onde trabalha e não o pode fazer. Está literalmente impedido de fazê-lo. Nem um só tema! Não pode partilhar com quem deve partilhar uma descoberta, uma nova edição, uma reedição ou uma notícia ou curiosidade que se envolva no contexto musical. Se o fizer sofrerá consequências disciplinares. O que é isto senão censura?
Neste dia 25 de Abril, em que rádios nacionais se pôde escutar, por exemplo, a voz de José Afonso? Independentemente de José Afonso ter sido um dos mais destacados autores da chamada cantiga de intervenção e de "Grândola Vila Morena" ter sido magistralmente utilizada como uma das senhas da revolução em Abril de 74, estamos diante de um outro problema bem grave. José Afonso deveria fazer parte dos temas musicais emitidos em qualquer rádio que se preze. Não só no dia da liberdade, mas na liberdade de todos os dias ao longo do ano. Por critérios unicamente ligados com a qualidade. Quando estamos a falar de José Afonso, não estamos a falar de um qualquer artista que obteve êxito nos tops de vendas, ou que teve um hit, ou até que tenha feito um álbum bom. Quando falamos de José Afonso falamos de um dos melhores músicos, compositores e intérpretes de todos os tempos em Portugal.
Falamos do autor (pelo menos para mim) do melhor disco de música portuguesa alguma vez feito: o álbum "Cantigas Do Maio". Toda a obra de José Afonso ultrapassa em muito todas as conotações políticas. É um esteta eclético, intemporal, moderno, único, lusófono, universal.
No entanto, ele está actualmente proibido na rádio. Não por decreto lei, não por imposição de regime, não por ser branco ou por ser português. Mas censurado, sim. O que para o caso vai dar no mesmo. Ele e milhares, milhões de outros. José Mário Branco, por exemplo, editou em 2004 (30 anos depois do 25 de Abril) um novo e magnífico trabalho. Ouviu-se com regularidade na rádio? Não! E hoje, alguém o consegue "captar" na rádio? Também não! Há também gente mais nova a fazer coisas interessantes na música em Portugal, mas não há divulgação na rádio para eles. Alla Polacca; Novembro; Melo D; Sloppy Joe; Les Éléphants Terribles; Old Jerusalem; Los Tomatos; Cool Hipnoise; etc. Onde os podemos ouvir? Não na rádio, salvo sempre as raras (cada vez mais raras) excepções.
Que rádio temos nós que não "arranja" espaço para os melhores? Até os Beatles (mundialmente reconhecidos como a melhor banda de sempre) estão fora das "play-lists". Em detrimento de outros infinitamente menos valiosos. E os Beatles nunca deixaram de ser notícia desde 1962!
Os cantautores de intervenção eram proibidos porque as mensagens que transmitiam faziam pensar. Abalavam as consciências adormecidas pelo desconhecimento e acossadas pelo medo.
Eram proibidos porque despertavam o pensamento para o espírito crítico, para a lucidez sobre o que se estava a passar política e socialmente no país. Eram proibidos porque as letras das suas canções mostravam o caminho para sair da lama que alimentava os algozes, porque faziam reflectir no que não poderia ser ignorado.
Eram proibidos porque levantavam a cortina de ferro que fazia de Portugal um campo de concentração mental.
E hoje, são proibidos porquê? Pelas mesmas razões? Os "play-listers" sempre podem dizer que se quiserem colocar José Afonso na lista de "passáveis" que o poderão fazer sem restrição nenhuma. A verdade é que não o fazem. Podem alegar muitas coisas, como por exemplo dizer que José Afonso "é antigo, já não se usa", ou que "é antiquado", que "não se contextualiza no perfil da estação", que "não encaixa no resto da lista", que "não é dançável", que "as canções são velhas, fora de moda", etc, etc...
Mas estes "play-listers" são os mesmos que repetem até ao inaudível o hit-single, que foi sucesso de plástico há vinte e muitos anos e que rodou até riscar-se nas pistas de carrinhos de choque numa qualquer feira popular. São os mesmos que repetem ad eternum o slow rock-fm vão-de-escada. Nos tempos da ditadura, nos tempos da "Velha Senhora", estavam proibidos na rádio (e fora da rádio) uma série de discos e artistas – a lista negra – e vivia-se no bafiento nacional cançonetismo (que também conseguiu trazer algumas - poucas - coisas boas, como a história se encarregou de comprovar).
Imperava a política sinistra dos três FFF = Fátima, Fado e Futebol, que eram o ópio do povo. Em 2005 só o futebol se mantém inalterado (na verdade, aumentado para quantidades industriais).
Mas tirando os proscritos, podiam-se passar na rádio milhares, milhões de outros. Assim os discos chegassem cá com a rapidez e a facilidade com que chegam hoje. É preciso lembrar que Portugal estava fora do mundo em tudo! Nos actuais tempos de "liberdade", nestes tempos da "Nova Senhora", só podem ser emitidos na rádio uns quantos discos e artistas previamente seleccionados (eleitos?) e com isto proíbem-se todos os outros, que são milhares, milhões deles. Maneira mais cavalheiresca de censurar autores musicais em tempo de democracia ainda ninguém inventou.
O tempo presente na rádio de âmbito nacional em Portugal mais parece o tempo passado do dia 24 de Abril de 1974. Com as óbvias adaptações temporais e estéticas.
Dá a impressão (assustadora, diga-se) que a rádio está a ser feita não para quem devia - OS OUVINTES - mas para uma entidade etérea, digna da obra prima de George Orwell. Foi (para) isto que Abril abriu?
Algo ou alguém está a lucrar – e muito (?!) – com isto, mas não são os ouvintes nem são os profissionais de rádio.
Repare-se no estado a que as coisas chegaram. Já nem sequer se exige que ouçamos José Afonso com a regularidade merecida na rádio ao longo do ano, mas que ao menos se ouça uma vez por ano no dia 25 de Abril. Mas nem isso acontece. O que diria o próprio Zeca de tudo isto se pudesse? Ao certo, ninguém pode saber, mas todos podemos suspeitar o que pensaria sem corrermos o risco de resvalar para a valeta da especulação.
Na altura, tal como hoje, a música emitida na rádio (relembro: com honrosas excepções) não serve a missão de serviço público, não serve o interesse do público, não serve para satisfazer os gostos do público nem serve a música portuguesa. Serve apenas e só para controlar o público.
P.S. I: Há poucos meses, Jorge Palma, entrevistado por Ana Sousa Dias no programa "Por Outro Lado" na 2 (RTP), mostrou-se bastante indignado com a rádio em Portugal no que diz respeito à divulgação de música portuguesa (Jorge Palma referiu-se à rádio em geral, excluindo a TSF, dizendo que "é uma rádio de notícias"...) E ele não é um dos mais prejudicados. Aqui e acolá, ainda se vão ouvindo alguns (poucos) dos belos temas do autor de "A Canção de Lisboa". Também há os mais favorecidos, que são sempre os mesmos.
A recentemente criada associação "Venham Mais Cinco" (curiosa esta utilização de um título histórico da autoria de José Afonso...) destina-se, dizem os seus fundadores, à defesa da música portuguesa. Da música portuguesa ou da música deles? Defende-se a música portuguesa criando uma associação em prol disso?
Segue-se uma citação do radialista António Sérgio, quanto mais não seja porque eu não o diria melhor: «nunca fui apologista dessas manobras dos "coitadinhos dos músicos portugueses" – uma série de gente que não consegue parir uma canção há mais de 30 anos e quer que ela rode incessantemente nas rádios para viverem à custa daquilo nas quintas onde estão estabelecidos? Artisticamente, penso que estamos a precisar de um novo porta-estandarte».
António Sérgio (BLITZ/02/Março/2004).
P.S. II: Eis alguns dos melhores trabalhos discográficos da música portuguesa na segunda metade do século XX.
A opinião é estritamente pessoal, e, tirando o álbum "Cantigas do Maio" de José Afonso – que para mim é o melhor disco de sempre da música portuguesa – a ordem é perfeitamente arbitrária. São apenas 10. Podiam ser 31.
José Afonso – Cantigas do Maio
Fausto – Por Este Rio Acima
Carlos Paredes – Guitarra Portuguesa
José Mário Branco – Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades
Fausto – Por Este Rio Acima
Carlos Paredes – Guitarra Portuguesa
José Mário Branco – Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades
Amália Rodrigues – Busto
Sérgio Godinho – Pré-Histórias
Carlos do Carmo – Um Homem Na Cidade
Jorge Palma - Só
Sétima Legião – A Um Deus Desconhecido
GNR – Psicopátria
A luta dos povos contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.
Milan Kundera
--------------------------------------------------------------------------------------------
O que eles dizem (01)
--------------------------------------------------------------------------------------------
O que eles dizem (01)
Carlos Tê
EXPRESSO, suplemento Guia, página 30:
«Os Dias Da Rádio»
«(...) É depois de definido o seu público-alvo que uma emissora elabora a "play-list", esse hambúrguer radiofónico destinado a impedir que o radialista se disperse pelo labirinto do seu próprio gosto. Daí hoje já não haver autores de programas de rádio, mas sim amanuenses que accionam o "enter" do programa do computador. Por isso a "play-list" não é uma emanação diabólica do mercado, mas uma ferramenta que fideliza o "target" consumidor e o agrilhoa a uma irresistível cadeia de canções ao fim da qual o espera um "jingle" a um plano de poupança. Poder-se-ia dizer que é uma variante maciça dessa entidade que ganhou espessura artística no século passado – o "disc-jockey". É ela que leva os promotores de markting das editoras a andar
com os discos dos seus artistas no bolso a mendigar um lugar na lista».
Fonte: Jornalismo Porto Rádio
NOTA: O próximo texto neste blogue será sobre o actual trabalho na RDP do radialista Álvaro Costa. Como aperitivo, e no seguimento dos textos de hoje, eis apenas uma curta citação sobre o que Álvaro Costa pensa da rádio actual: «Está tudo tão computorizado que, se o mundo acabasse hoje, parte das rádios portuguesas só o dizia amanhã...»
Álvaro Costa
(BLITZ/11/Janeiro/2005)
(BLITZ/11/Janeiro/2005)
E acrescento eu: ... e muitas outras nunca o diriam, pois não está lá ninguém dentro para o fazer.