quarta-feira, 29 de março de 2006

Paradeiros



















Das quase três décadas que levo enquanto ouvinte de rádio, há programas, há nomes, há pessoas da rádio que me fazem hoje em dia muita falta apesar de, na sua esmagadora maioria, nunca as ter conhecido nem de nunca as ter sequer visto. Através dos seus programas na Rádio, foram grandes companhias para mim. Estavam no meu quarto, sonorizavam as minhas tarefas, suportavam os meus tempos de estudo, iam comigo para a escola, estiveram à mesa comigo em todas as refeições oficiais e oficiosas, dormiram comigo, foram assunto de muitas conversas, obrigaram-me a comprar cassetes, discos de vinil e CD. Levaram-me a adquirir e a ler livros. Fizeram-me ver cinema. Contribuíram para a minha catarse diária (todos nós temos direito a isso!). Recordo aqui algumas dessas pessoas, alguns desses programas. São factos, que tiveram o seu papel formativa e informativamente na minha vida. Cada qual à sua maneira e com graus de intensidade distintos. Mas todos estes que agora recordo, entre muitos outros, foram e são importantes. Neste caso apenas me dirijo, em forma de elegia, a pessoas que estão actualmente “desaparecidas” do mundo da rádio. A mesma Rádio que provoca sonhos e paixões e que destrói carreiras. Umas por opção, outras por força das circunstâncias, outras por razões que desconheço. São pessoas que, por um momento ou mais das suas vidas, dedicaram-se à rádio e a essa “manigância” hoje cada vez mais rara e abstracta que é pensar, esboçar, conceber e realizar um programa de rádio. Pessoas que passaram pela rádio, ou que quiseram que a rádio passasse pelas suas vidas ultrapassando a simples condição de ouvinte, deixando as marcas que deixaram. Povoaram imaginários, influenciaram gostos, afectaram de forma positiva o modus vivendi de quem fez e de quem ouviu.

O que é feito deles?
O que é feito de Júlio Montenegro, radialista veterano do qual eu ouvia sempre o seu magnífico “Voo de Pássaro” na RDP-Antena1, durante os serões de segunda a sexta-feira, das 23:00/01:00, na segunda metade da década de 80. Era um dos raros programas que não perdia de ouvido na cinzenta rádio pública de então. Este voo reluzia!

O que é feito de Pedro Albergaria, mais veterano ainda, autor do inesquecível “Viva o Velho” na Rádio Comercial. Profundo conhecedor de música popular das décadas de 50, 60 e 70, e uma das mais poderosas vozes do então “F.M. Estéreo”. Tinha como indicativo de programa o magnífico instrumental “Albatross”, dos Fleetwood Mac na era do guitarrista Peter Green.

O que é feito de Ana Luz, mulher de voz acolhedora, autora do esplêndido “Suave Encanto” na há muito tempo extinta RGT – Rádio Geste (Lisboa 96.6), dirigida por Henrique Garcia, nas tardes de 2ªa 6ª, das 3 às 5. Tinha um tema de Vangelis como indicativo, Maria João Pires como amiga e alguns instrumentais fetiche, como por exemplo o assombroso (e longo) “Sending Lady Load” tocado ao piano por Martin Duffy, no álbum “Pictorial Jackson Review” dos Felt.
Ana surgiria tempos depois já num registo muito diferente, na Rádio Comercial, julgo que em Onda Média.
A última exposição pública da qual que me tenha dado conta foi como apresentadora, ao lado de Júlio Isidro, num programa de TV de que já nem me lembro o nome. Mas da rádio lembro!

O que é feito de Amílcar Fidélis, homem de voz estranha e enigmática, autor da maravilhosa “Ilha dos Encantos” na primeira etapa da RFM, desde 1987 até 1990. Noites de semana, da meia-noite à uma da manhã. Indie Pop de extremo bom gosto, com rubricas fixas, como por exemplo “O Tesouro da Ilha”, que tinha a voz de Maria Flor Pedroso (?) / Teresa Fernandes (?) no jingle. Também havia alguns convidados esporádicos para se debater sobre determinado tema. Foi assim durante várias emissões no início de 1990 para fazer-se o balanço da década que entretanto acabara. E tão diferente que era a RFM nesses tempos…

O que é feito de Ana Maria Delgado, autora do mais que brilhante programa “UNO”, na RJC – Rádio Jornal do Centro/TSF-Coimbra, entre 1990 e 1993. Um belo tango como genérico, várias vozes convidadas a dizerem textos de poesia ou prosa, música de sonho, tendo como portfolio essencial o que de melhor se encontra no vetusto American Song Book. A frágil e aguda voz da autora só aparecia no fim para desvendar a ficha técnica. Depois da unificação em rede da emissão da TSF/Press para todo o país, e da abolição de uma série de programas de autor, entre eles o “UNO”, nunca mais se soube nada de Ana Maria Delgado. E assim terminou um programa de primor refinado.

O que é feito de Rui Morrison, o grande senhor de “Morrison Hotel” na Rádio Comercial. "Morrison Hotel" é um dos programas de rádio que mais recordo. Era mais do que isso. Era um conceito, uma estética sublimada. Tinha por indicativo um curto e belo instrumental de Tom Waits. “Morrison Hotel” teve duas fases. Gostei de ambas. Só não gostei dos hiatos e do fim. Continuei a acompanhar Rui Morrison na Comercial mesmo quando ele já não estava no seu melhor, assinando um programa inócuo e fraco por comparação com o “Hotel”, chamado “Caixa de Música”, que tinha por indicativo um tema instrumental também de Tom Waits (e Crystal Gayle) na Banda Sonora do filme “One From The Heart”.
Até 1993 não lhe perdi o rasto, mas depois veio a privatização da Rádio Comercial e… lá se foi embora o criador do melhor hotel da rádio portuguesa.
Rui Morrison reapareceu em 1996 na efémera Central (93.7, Lisboa), num horário nocturno a par do Jornalista João Paulo Guerra (nos noticiários). Dedicou-se depois por inteiro à publicidade, ao teatro e ao cinema. Mas a rádio…

O que é feito de Sílvia Alves, autora do saudoso “Sete Mares” na Antena1, na segunda metade dos anos 80. O indicativo do programa era o tema istrumental "Saudade" dos Love And Rockets. Animadora nas extintas XFM e Voxx. O último programa que assinou na rádio tinha o nome de “A Amante do Gerente Comercial” (Voxx). A sua voz grave, profunda, arrastada e meio rouca devem ter inspirado tal designação para essa derradeira (até quando?) passagem pelo mundo da rádio. Desde 2001 que o éter não se deixa arrebatar por uma das vozes femininas mais sedutoras de sempre.

O que é feito de João David Nunes, director do melhor período que conheci na Rádio em Portugal: anos 80 na Doce Mania de Rádio Comercial. Ele era a cara e o corpo desse grande projecto. Um senhor, um aristocrata da rádio, dono de uma das mais singulares vozes da rádio e também da publicidade no nosso país. Ouvia-lhe as leituras e declamações com o ouvido encostado ao transístor. Como quem ouvia uma história de embalar, mas nunca me dava o sono! Actualmente ouvimo-lo em spots de publicidade, mas não a fazer rádio.

O que é feito de Mafalda Lopes da Costa, autora do poético “Do Outro Lado do Espelho”, na TSF, nos primeiros anos da década de 90. A arte do som e da palavra num casamento feliz, porém com um final abrupto e inesperado.
Mafalda reapareceu em finais dos anos 90 justamente na TSF com “Da Capa à Contra Capa”, uma crónica literária diária. Mas depois disso, na rádio, nada!

O que é feito de Rui Neves, autor do mítico “Os Musonautas” na Comercial de 80. Um Jazz man dos hemisférios mais difíceis, que espalhou mistérios vários em programas na XFM e na TSF. Lembram-se de "Jazzosfera" e “O Jazz é Como as Bananas”?
Sei que está – ou esteve até há pouco tempo – ligado ao Centro Cultural de Belém. Mas quanto a rádio…

O que é feito de António Curvelo, especialista em Jazz e Blues, autor de programas de boa memória na TSF. “Quem Tem Medo de Charlie Parker?”, “TSF-Blues” ou “Jazz Avenue” são os exemplos. A partir do verão de 2003, com a reestruturação da Rádio Notícias, calou-se esta voz da rádio. Continua a escrever sobre Jazz e Blues na imprensa, mas não é a mesma coisa.

O que é feito de Isabel Simões, animadora na RJC-Rádio Jornal do Centro/TSF-Coimbra. Em nada ficava a dever às maiores vozes femininas do seu tempo. Foi um privilégio para quem a ouvia nas emissões locais. O resto do país perdeu um bocado em não a poder ter conhecido. A sua última aparição pública, pelo menos que me tenha dado conta, foi num canal de TV por cabo cuja temática era a Saúde.

O que é feito de Fernando Quinas, a voz clássica da publicidade dos “Parodiantes de Lisboa” que escutei diariamente desde 1975 até meados de 80, sempre em onda média. Talvez a primeira voz que me lembro de escutar em rádio. Uma das figuras de renome da Rádio Comercial, que apanhei em diversas apresentações. A última vez que ouvi Fernando Quinas em directo foi em finais de 2002, na também já extinta Rádio Nostalgia. Ele assegurava o período da noite, desde as 20:00 até às 00:00. Actualmente surgem nas emissões de continuidade da Radar frases/provérbios com a sua voz.

O que é feito de Maria Alexandra, uma das animadoras com melhor presença na rádio em Portugal dos últimos 25 anos. Ouvi a sua estreia em directo ao lado de Ruy Castelar, nessa verdadeira instituição que era o “Clube da Manhã” na onda média da Rádio Comercial. Seguiu o seu próprio caminho a solo na rádio e um dia chegou à televisão. Depois desapareceu. Esteve, não sei se ainda está, em spots de publicidade. E se a rádio necessita de uma animadora assim…

O que é feito de Isabel Risques, outra talentosa voz feminina que também teve a sua estreia ao lado de Ruy Castelar. A última vez que a escutei na rádio foi na TSF nas “Estórias de Portugal”. E a última vez que lhe escutei a voz foi em voz off na televisão por cabo.

O que é feito de José La Féria, autor de “O Vapor” nas eternas tardes do «FM Estéreo» da Comercial, das 15:00 às 16:00. O programa que sucedia a “Discoteca” de Adelino Gonçalves e antecedia o “Rock em Stock” de Luís Filipe Barros. Ouvi pela última vez José La Féria na segunda metade dos anos 90 na Onda Média da Comercial, entretanto transformada em Rádio Nacional e já encerrada.

O que é feito do próprio Adelino Gonçalves, autor da ainda hoje muito relembrada “Discoteca”, no início das tardes da Comercial (13:00/15:00). Às vezes eu faltava às aulas para ouvir estas emissões. Conheci imensa música nesta Discoteca. Já na década de 90 recusou ir para a RFM, regressando ao éter em meados dessa década, na NRJ-Rádio Energia. Mas as coisas não parecem ter corrido lá muito bem e desapareceu do mundo da rádio. Não há muito tempo “apanhei-o” numa crónica musical na Rádio Marginal (Lisboa, 98.1).
Continuamos a ouvi-lo em publicidade e em voz off nos canais de TV por cabo.
Mas, e a rádio?


O tempo que tudo transforma, transforma também o nosso temperamento. Cada idade tem os seus prazeres, o seu espírito e os seus hábitos
Nicolas Boileau
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O que eles dizem (14)
A morte do Zé Ramos é uma daquelas coisas impensáveis, embora previsíveis. Impensáveis porque não nos passa(va) pela cabeça deixarmos de vibrar com aquela voz firme, com aquele timbre grave a arrastado, aquele porto de emoções único. Previsível, infelizmente, porque José Ramos tinha tanto de genial como de excessivo. Ele viveu sempre em cima do risco. No tabaco, no álcool, na velocidade, no jogo, na vaidade, mas também na entrega total. A SIC deve-lhe muito. Quem gosta de televisão e de rádio... também.
Nuno Azinheira
in Diário de Notícias
Sábado, 25 Março 2006



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