segunda-feira, 6 de março de 2006
Prisioneiros Digitais
(OS OUTROS)
Eis-nos no século XXI. Um homem (ou mulher) encontra-se só nas quatro paredes de um estúdio de rádio, sentado em frente a uma mesa de mistura. À sua frente uma miríade de leds luminosos, vias e fontes sonoras , terminais e programas de computador, um relógio [atómico], aparelhos vários de reprodução sonora. Um microfone. Alguns papéis, um guião, um mapa de publicidade e uma playlist. Tudo para cumprir ao milímetro e ao milésimo. E o que tem que fazer este homem ou esta mulher? Cumprir, cumprir. Emitir os programas (quando os há!) dos outros, colocar por ordem e apresentar a lista de músicas escolhidas por outros, declamar frases publicitárias escritas por outros, ler as introduções e finalizações a programas (dos outros) escritas por outros, ter a rapidez e a síntese técnica para não falhar em toda esta concepção designada por outros. É isto que é ser animador de rádio, na rádio tradicional do século XXI. Não importa se a pessoa que ali está sabe algo mais do que executar aquela tarefa, ou se poderia com esse mais saber acrescentar mais valias ao produto final que se lhe encerra nas mãos e na voz. O que faria aquele homem ou aquela mulher que ali está se dispusesse de liberdade? O que nos ofereceria a sua capacidade onírica? Que pouco mais de azul nos traria aquele “ele” ou aquela “ela”? Não sabemos…agora. Já o soubemos, não já?
Mas nós – todos nós – também somos os outros para os outros.
Há um pequeno número de homens e mulheres que pensam por todos os outros, e para o qual todos os outros falam e agem
Jean Jacques Rousseau
P.S: Atenção, jovens que pensam em fazer rádio. Muita atenção ao futuro que procuram!
(Mas há uma coisa chamada Podcast, não há?)
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O que eles dizem (10)
“Hoje colocam-se em estúdio os técnicos certinhos, que não falhem o momento do jingle nem a playlist que alguém preparou. O bom profissional de rádio hoje já não é o autor, é o que é ágil de mãos para pôr o que lhe mandam pôr no momento certo. Os outros em que me incluo, daqui por dez anos são pré-história.”
Armando Carvalhêda
in DN
11.Dezembro.2005
«No texto que escreveu para o livreto da compilação [Febre de Sábado de Manhã 25 anos] menciona o estado actual da rádio portuguesa, sublinhando a ditadura das playlists. Ainda consegue ligar a rádio para ouvir música?
Não, porque para mim a rádio é descoberta, e aquilo que eu verifico é que, embora tenha metido a pata na poça inúmeras vezes, eu e a minha geração corremos riscos. A Febre de Sábado de Manhã foi um risco no seu todo, mas todos os dias se corriam riscos – com as nossas escolhas musicais, a nossa capacidade de mostrar ao público o que é que vinha de novo. Agora a rádio só passa coisas garantidas, onde raramente a novidade entra. Hoje prefiro a rádio de palavra.
E qual é que passa a ser o papel da voz nesse contexto?
Nunca ouço alguém a explicar minimamente o que é que se vai ouvir. São acríticos, não informam…Isto não é uma crítica às pessoas que estão nessas funções. Alguém os manda fazer assim e a vida está difícil para todos. Credito que haja muita gente que está atrás do microfone com muita vontade de fazer coisas e de ter ideias, mesmo que sejam um disparate. Hoje em dia, penso que o lápis azul foi substituído pela caneta que assina o cheque do ordenado.»
Júlio Isidro
in BLITZ (entrevistado por Jorge Manuel Lopes)
24.Janeiro.2006