domingo, 22 de outubro de 2006

Do outro lado do vidro...















... está Ricardo Mariano há já quatro anos. E ainda bem. Oxalá que os sortilégios da vida e da vida na rádio o mantenham por muitos mais. O programa «Vidro Azul» completou no passado dia 14 de Outubro quatro anos e há uma emissão comemorativa (disponível em formato podcast), onde o autor Ricardo Mariano faz desfilar alguns dos temas musicais que serviram e servem de pilar ao programa que realiza na Rádio Universidade Coimbra desde 2002. Nesta emissão aniversariante, o início está a cargo do primeiro tema musical a ser emitido pelo «Vidro Azul»: "Sacrifice" de Lisa Gerrard & Pieter Bourke. As duas horas semanais na RUC que Ricardo Mariano assina dirigem-se a espíritos plácidos, contempladores da beleza e da intimidade – não da obscuridade – e fazem-nos sair do planeta sem tirar os pés da terra, num terno abraço nocturno. Tem sido sempre assim e assim continuará a ser. Mas há algo mais: «Vidro Azul» também é um programa de informação. Informação musical acerca dos sons que por lá passam, com apresentação condimentada e ligações (links) aos artistas seleccionados através do criterioso blogue que acompanha e alimenta o programa.

A fotografia do estúdio em que acontece o «Vidro Azul» desencadeia em mim um turbilhão de sensações no plano das memórias que tenho da própria rádio. É um estúdio "à antiga" (início dos anos 90). Quase que se sente a temperatura da mesa quente! É um espaço orgânico. A disposição dos equipamentos, ainda com leitores de CD, vias de cursores, os auscultadores da “guerra”, apoio informático elementar e discos sobre a mesa. E isto é que é o mais raro de se ver... discos sobre a mesa, trazidos para o estúdio pela pessoa que se vai lançar on air nas próximas horas, enfrentando um público desconhecido, invisível, mas que se sente (imagina) estar do outro lado da barreira etérea. Vejo nesta foto discos que eu próprio transportei durante anos para os estúdios de emissão das rádios por onde passei e onde era livre de escolher o que se ia fruir naquelas horas de voo. Vejo ali "Down Colorful Hill", o primeiro disco dos Red House Painters que comprei em 1992, depois de o ter escutado pela primeira vez num programa nocturno de António Sérgio na Rádio Comercial. Vejo ali o já desencantado "Heaven Or Las Vegas" dos Cocteau Twins, um disco que levei inúmeras vezes para o estúdio, mas que acabava sempre preterido pelo insuperável "Treasure". Vejo ali o inigualável primeiro álbum dos Alpha "Come From Heaven", que o meu então colega de animação Luís Paulo Borges estreou na TSF e que, qual dádiva dos céus, me ofereceu o single "Sometime Later" dizendo-me afincadamente: "Tens de ouvir isto!". Está também ali o deliciosamente dramático "60 Watt Silver Lining" do American Music Club Mark Eitzel. Há mais de dez anos, fui dos primeiros a passar na rádio a canção "No Easy Way Down" daquele disco. Era uma versão de um original de Carole King. A versão de Eitzel supera a criadora, uma coisa não muito usual, especialmente no caso de Carole King. A minha – também então colega de animação – Inês Meneses, adorava a canção e disse-me, lançando-me o desafio: "Vamos fazer um hit com isto!". Passámos muitas vezes esta canção e fizemos um hit (alternativo). Não tenho dúvidas que foi através das nossas emissões que esta canção teve a projecção que teve, dando a conhecer melhor quem era Mark Eitzel. Foi para poucos (uma imensa minoria?) mas esses poucos eram muitos. Nesta foto reconheço ali a lombada branca do disco de capa verde "Five Leaves Left" de Nick Drake, que me foi oferecido há anos pelo meu querido amigo Miguel Mendonça, músico e agora vocalista do projecto português «Novembro», mas que na altura se encontrava na encruzilhada anacrónica dos «Fetiche» / «Nowere». Também está ali na fotografia o EP de Nick Cave & The Bad Seeds com a magnífica canção "(Are You) The One That I've Been Waiting For?". Do álbum que lhe deu guarida perene (“The Boatman’s Call”), usei-a muitas vezes, apesar de "fugir" muitas outras vezes para "Into My Arms". Por fim, fito ainda ali o cortante "Grace" de Jeff Buckley, que me foi dado a conhecer pela mão do meu amigo e colega na TSF Luís Mateus... "Parece um lobo!", segredava-me ele acerca do tema "Corpus Christi Carol". Alguns anos depois, em 1997, aquando da inesperada morte de Jeff, fiz em directo uma emissão de cinco horas em que juntava pai e filho (Tim Buckley e Jeff Buckley) estabelecendo paralelismos de existência e obra dos dois, separados na vida e unidos na morte. E de cada vez que cruzava "No Ar" um com o outro, o chão do estúdio tremia.

Nesses tempos, o Luís Mateus, o Luís Paulo Borges e eu, gostávamos de conduzir a emissão de rádio a seguir à «Íntima Fracção», porque já ali estava o “nosso” público. A ambiência já estava criada, a audiência conquistada. Só tínhamos de manter o elevado nível e prolongá-lo por mais umas horas. A «Íntima Fracção» de Francisco Amaral (programa da mesma família do «Vidro Azul») passou-me pelas mãos centenas de vezes durante os seus últimos nove anos na TSF. Não nego a saudade dessas noites mágicas passadas no estúdio às escuras. E hoje podia ser o «Vidro Azul», mas talvez seja melhor assim. Talvez nenhuma grande estação tenha o merecimento de albergar um programa assim. E não há dúvidas: por intermédio do acesso possibilitado pelas novas tecnologias, há cada vez mais gente do lado de cá do vidro.

E o cego destino sob a noite se cumpre!
Este passado recente, tão presente e tão ausente, parece-me ter acontecido ontem e ao mesmo tempo parece-me ter ocorrido há milhares de anos. Como tanto mudou em tão pouco tempo! Das pessoas que referi, dos discos que falei, dos companheiros da rádio que referi, já nenhum trabalha comigo (ou sou eu que já não trabalho com eles), algumas destas pessoas já não estão entre nós, outras nunca mais voltei a ver. Agora já não há trocas nem sugestões mútuas à porta do estúdio. Acabou a partilha e quando ainda acontece, já é fora do universo da rádio. Os formatos, as playlists, acantonaram os vasos comunicantes nas prateleiras lá de casa. Da riqueza da diversidade de personalidades, de gostos e de expressões variadas, fez-se tábua rasa, equivalente a uma espécie de “genocídio” artístico e profissional.
É também por tudo isto que é absolutamente vital a importância de existir na Rádio – seja ela qual for – um programa como o «Vidro Azul». Porque torna possível um pedaço de mundo já impossível.


P.S: Atenção à próxima emissão do «Vidro Azul». Vão ser 120 minutos de temas instrumentais.

RUC – Rádio Universidade Coimbra (107.9 FM): 2ª Feira (23:00/01:00)
Repetição: Sábado p/ Domingo (02:00/04:00)
Rádio: http://www.ruc.pt
Blogue: http://www.vidroazulruc.blogspot.com
Podcast: http://www.vidroazul.libsyn.com

Mais sobre Ricardo Mariano e o programa «Vidro Azul» na «Rádio Crítica»: 18/Fevereiro/2006



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