sexta-feira, 19 de outubro de 2007















A tarde na praia. Dia de prolongado Verão ou Outono primaveril. Enquanto houver este Sol e Mar, há que aproveitar. Caminha-se esparsamente no denso areal deserto. Apanham-se conchas raiadas de bom tamanho, miniaturas de búzios e uma estrela-do-mar. Ouve-se o quebranto do mar e nos ouvidos mistura-se a sua eterna voz com sons que, não sendo Rádio, vieram ter a mim através da Rádio. Soa nos auriculares a melodia “Estate” na trompete de Jon Hassel; canta a voz escoante de Julie London em “Theme From a Summer Place”:

There's a summer place
Where it may rain or storm
Yet I'm safe and warm

Astrud Gilberto namorando o castelhano em “Tu Mi Delírio”; João cantando o tropicalíssimo “O Barquinho”:

Dia de luz, festa de sol e um barquinho a deslizar no macio azul do mar

Tudo isso é paz, tudo isso traz
Uma calma de verão, e então
O barquinho vai, e a tardinha cai

Jobim em “Wave”; Toquinho, Vinicius e Marília na imortal “Tarde em Itapoã”:

Um velho calção de banho
O dia para vadiar
Um mar que não tem tamanho
Um arco-íris no ar

Poesia outrora dita na Rádio, na voz de Maria:

Jaz aqui
Na pequena praia extrema
O capitão do fim

Ou Sophia, na voz de Inês:

É um esqueleto branco, o capitão
Branco como as areias
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração

Vem-me à memória que foi num cenário assim que nasceu a ideia de «Pontos de Fuga». Pessoas que falassem dos lugares que mais gostam e porquê. Daria um bom tema para programa de Rádio, pensei. Passaram-se anos até que concretizasse o projecto e o pudesse levar, por fim, às ondas da Rádio. Tudo isso é já passado, como se sabe. Mal vale a pena sublinhar que é preciso sair-se do pragmatismo para dar asas à imaginação. Acho difícil ter-se ideias para coisas novas estando cercado de tarefas ditas urgentes, na sanca quotidiana. O ócio é fundamental para deixar a mente entrar em derivas oníricas. Sonhar acordado. Foi isso que fiz. Foi dessa fuga que nasceram os pontos. Seria possível hoje voltar aos mesmos pontos de partida? Duvido. O ócio, a placidez, são coisas mal vistas e estão seriamente ameaçados. São estados catalogados de ineficiência e inutilidade por parte da sociedade practis urbano-moderna. Não tarda, descritos como defeitos capitais do ser humano deste novel milénio.

Nunca houve tantos seres humanos no planeta como agora, nestes profusos dias de fast living. Nunca houve tanta gente para comunicar e tantos meios para o fazer, na chamada sociedade da informação.
E, afinal, o que é a comunicação hoje em dia na era da comunicação? Perdem-se horas intermináveis em chats de conversação instantânea, em messengers, escrevem-se e consomem-se incontáveis e-mails, enviam-se infinitos SMS’s. Tudo formas de comunicação isolacionista, independentemente da distância física ser de um metro ou de milhares de quilómetros. Gente fechada em casa, sentada sobre o próprio cú, a bater no teclado e com os olhos pregados num ecrã de pixels. Multiplicam-se as conversas cortadas, assuntos deixados a meio, geram-se equívocos infindáveis e desnecessários. Dispensa-se com lividez a troca de olhares, o toque no ombro, a palma da mão ou um sopro primordial de tacto. É a pura expressão do pensamento fragmentado. Não se consegue falar com ninguém mantendo uma conversa com princípio meio e fim. Executam-se pedaços de conversa e nada mais. Não se sai da base mínima comunicacional e não se salta da rama. Os assuntos são levemente e frivolamente abordados, nunca verdadeiramente discutidos ou analisados ao pormenor. Multiplica-se e reproduz-se ad eternum a conversa de circunstância, vazia de conteúdo ou de pertinência. Ninguém tem paciência para uma conversa e, mais grave, para ouvir seja quem for. Temos que interromper e ser interrompidos a todo o momento. A viciante ditadura zapping e hedonismo oco. É esta a comunicação no dealbar do século XXI. Não há espaço para o detalhe, embora George Steiner parafraseasse: Deus está no detalhe, querendo dizer que é a vital importância do pormenor que augura o maior. Todas as grandes coisas nascem de forma pequena. Quando se nasce grande, morre-se cedo. Assim como uma coisa para ser bem feita, precisa de tempo. Dar tempo ao tempo, como apregoou sempre a sabedoria popular. O projecto «Pontos de Fuga» levou três anos a fazer a viagem da praia ao éter.

Mergulho por fim nas altas ondas desta maré viva de Outubro. Direi mesmo, neste verde e revigorante Mar de Outubro. Ao fim de horas na mais natural das hidromassagens, retiro-me com os lábios roxos e a pele franzida, sem a mínima necessidade de falar com ninguém. De nada serviria uma caterva de telemóveis nos momentos seguintes, ou sequer um simples auto-rádio. Um sorriso de contentamento apenas, próprio de quem acaba de sair de uma coisa abstractamente próxima de um orgasmo cósmico.
Chegado a casa, já dentro na noite, eis-me a percorrer e-mails, ouvindo rádio, espreitando telejornais e escrevendo isto mesmo.

A vida em Portugal seria menos difícil se fosse Verão o ano inteiro.

[E foi um dia sem rádio? Claro que não: cinco horas de estúdio em directo, escuta na viagem para a casa de falar e escuta no regresso].




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