quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

De ouvidos bem abertos














Mais uma sessão única, desta vez na principal sala da Cinemateca Portuguesa. Numa outra sala, também ela grande e repleta de público, assisti à estreia da derradeira obra de Kubrick, já com o autor morto, em 1999. Lembro-me das caras das pessoas à saída dessa sessão. Olhares dissimulados entre confusão e perplexidade. Um não sei quê de esquisito estampado nos rostos, lembrando uma das sequências mais eloquentes do próprio filme, aquando das máscaras em primeiro plano. Espanto e surpresa. O filme até que estava a ser… digamos que normal, até à chegada ao baile de máscaras. A partir daí o enredo dá uma grande volta e a dimensão do imprevisto é total. Lembro-me de nessa estreia nacional ouvir alguém na sala fazer soar um exclamado “mas o que é isto?” Anos depois, outra sessão de Eyes Wide Shut, estritamente caseira, na Adelaide Cabete, aos pés de um aquecedor e uma manta sobre os joelhos. Outra vez a perplexidade, o espanto e um silêncio inquietante.
Agora esta sessão muito mais partilhada, com um público mais maduro e informado. A plateia assistente já sabia ao que ia. Era uma revisão, não uma visita debutante.
A música que acompanha a história de Eyes Wide Shut tem a magnitude e eficácia que atravessa quase toda a obra de Stanley Kubrick. A selecção musical, a cargo do próprio cineasta (melómano de reconhecido bom gosto erudito) é também ela uma personagem fulcral na teia de acontecimentos da acção. Marcante. Indispensável. Nos momentos em que a música é o agente principal no desenrolar dos acontecimentos, não pude deixar de lembrar que aquelas peças sonoras da autoria de Jocelyn Pook, ou de György Ligeti, foram montras luminosas na noite da Rádio quando ainda era permitido – em directo – pegar nelas e espalhá-las nos ares. Tudo uma questão de saudade e algo mais.
Naquela noite, o Museu do Cinema fechava o ciclo «Temps d’images: o Cinema à volta de cinco artes, cinco artes à volta do Cinema» [coreografia]. Eyes Wide Shut foi apresentado pelo co-programador Pierre-Marie Goulet e, antes da sala escurecer, ficou bem vincada a ideia que, apesar das críticas depreciativas e da censura nos Estados Unidos (onde o filme foi encurtado a fim de não mostar o festim), o último filme de Kubrick perdurará no tempo. As críticas negativas e a censura passarão, a obra permanecerá.
A sessão na Cinemateca coincidiu com o dia da última publicação em podcast da série de programas «Pontos de Fuga», em que o convidado foi João Bénard da Costa. Nessa emissão, o presidente da Cinemateca explicou o efeito onírico do cinema que, em certa medida, reproduz o mecanismo do adormecimento. Quando estamos a rever um filme que nos marcou e/ou que gostámos muito estamos, conscientemente ou não, a querer repetir as sensações da primeira vez. Estamos a pedir à sala de projecção da história: conta-me outra vez!

…a realidade de uma noite, para não falar na de toda uma vida, possa alguma vez ser toda a verdade.
– E que nenhum sonho é apenas um sonho.




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