domingo, 7 de novembro de 2010

Palavra de Lobo (VI)

Fim-de-semana ANTÓNIO SÉRGIO na «Rádio Crítica»























Quando no ano de 2001 comecei a coligir dados para a primeira compilação "Som da Frente" senti de imediato que os 11 anos em que o programa se manteve "No Ar", através da R.D.P. – Rádio Comercial entre 1982 e 1993, iriam obrigar-me a muita ginástica para lidar com essa enorme carga de actividade ininterrupta do meio musical.
Estava consciente de que o programa divulgara milhares e bandas, artistas e projecto musicais, uns mais marcantes que outros, o que naturalmente levantava constrangimentos à concepção de um acoplamento coerente e, ao mesmo tempo, aliciante para quem se sentisse motivado para tal reencontro.
Antevi, mas nunca na totalidade do pesadelo que se tornou, que o processo de licenciamento viria a sofrer incríveis dificuldades (muitas das quais redundaram em impossibilidade) na obtenção de determinados temas de certos artistas.
Resolvi planear uma compilação de material sonoro da emissão radiofónica que viajasse desde o seu início até ao aparecimento do 'compact-disc' em 1986, ganhando assim, uma data 'redonda' e um limit cómodo.
Confiei que, mediante resultados, tudo se viesse a completar com um resumo menos parcial de todo o tempo e vida do programa, pondo em saliência os muito cambiantes, as novidades e os empurrões com que a música popular (e não só o rock) nos presenteou nesse período brilhante de invenção e performance.
Ao partir para este segundo e final passo na reposição da memória do "Som da rente", pensei no reencontro com os que descobriram na Rádio portuguesa, um espaço que apenas tinha como objectivo ser um estandarte da "arte de ouvir".
Sabia que ao concretizá-lo se tornou a companhia de uma geração a quem se pedia pela avidez pelo conhecimento, uma atitude de diferença, uma agilidade igual ou superior à do próprio programa, para que a montra e sons se tornasse a "enriquecedora experiência sensorial" que povoa ainda o imaginário de muitos dos seus contemporâneos.
«O "Som da Frente" propunha-se como projecto de divulgação e com espaço de inovação na medida em que se procurava encontrar o ponto de viragem nas formas de abordar a música, tentando deslocá-las para fora do âmbito restrito do 'rodar de discos' descontextualizado. De onde quer que o mundo o observasse, O Som da Frente observava o mundo.» (escreveu Ana Cristina Ferrão na nota de capa da edição anterior, e estas palavras espelham o projecto rádio subjacente a esses 11 anos de emissão).
Graças aos ouvintes, às músicas e aos músicos a quem sempre brindei com o protagonismo na inovação, na mudança e na alternativa, constato hoje que o sonho de muitas noites desses longos 11 anos e vida "no éter" se tornou realidade. Uma realidade que é também memória e que dedico a quem fez mais do que todos nós pela música: "John Peel – Music Lover".
Como repeti noite após noite, pelo direito à diferença!

António Sérgio
Inlay CD «António Sérgio apresenta SOM DA FRENTE II 1982-1993»
Janeiro 2005












A segunda compilação de temas do Som da Frente foi editada em 2005 (a primeira em 2002) e também em duplo CD, contemplando toda a vida do programa na Rádio Comercial (1982-1993). Um dos temas da segunda edição é “Wax and Wane” dos Cocteau Twins, do primeiro álbum «Garlands» editado pela 4AD em 1982.
António Sérgio foi, talvez, o primeiro radialista português a divulgá-lo. Pelo menos foi no «Som da Frente» que ouvi pela primeira vez. É o vídeo que se segue:

Cocteau Twins – “Wax and Wane” (1982)



O que eles dizem (57)

A irrelevância da rádio

Quando António Sérgio (1950-2009) começou a sua aventura radiofónica, foi tarde para mim porque eu já tinha substituído o rock e a pop do tempo pela música clássica, jazz e pop-jazz. Contudo, sempre reconheci nele um dos grandes profissionais do media radiofónico. Ele representava o novo; estudava e preparava o conteúdo dos seus programas; e tinha uma forma própria e adequada de o apresentar. Nessa unidade apuradíssima de conteúdo e forma, ninguém batia António Sérgio.
E, no entanto, a alta qualidade dos seus programas [António Sérgio] tornou-se anacrónica. O uso social e cultural da rádio mudou radicalmente nas últimas décadas. A audição de rádio perdeu relevância quanto aos conteúdos. Tornou-se uma ocupação do silêncio, uma anestesia aural. Não se ouvem programas, ocupam-se os ouvidos, no carro, no café.As rádios generalistas anularam os programas de "autor": não há público; poucos se dispõem a ligar o aparelho a uma hora certa para ouvir certo programa, mesmo no género preferido.Bob Dylan tem feito nos últimos anos um programa a contrário, como se fosse de antigamente, ao jeito de documento do que a rádio era quando tinha autonomia. Mas é um mundo que perdemos: os programas de Dylan ouvem-se em CD ou MP3.
Os programas de autor da segunda metade do século XX criavam um ambiente alternativo ao ouvinte, um mundo à parte, como a literatura ou o teatro. A rádio distinguia-se por programas diversificados, com personalidades vincadas em função dos seus autores, géneros, narrativas, estilos.Hoje a rádio generalista quase só pretende ser o ambiente "natural", ocupando todo o tempo com as mesmas canções impostas pelas editoras e pessoas a blablar como na TV, no emprego e na rua.O som da rádio parece o ruído de fundo dos hipermercados.Passámos do mundo do Som da Frente, de António Sérgio, para um zumbido, um fluxo indistinto, sem passado nem futuro.
António Sérgio subiu ao topo da realização radiofónica nas emissoras nacionais, que depois o afastaram; terminou, com a mesma qualidade, numa rádio local.Diz-se que até hoje nenhum media morreu por aparecer outro, mas pergunto a mim mesmo que tipo de vida tem a rádio, se a nada aspirar senão à sua própria irrelevância.


Eduardo Cintra Torres
In: «PÚBLICO», Sábado de 07 Novembro 2009



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