quarta-feira, 8 de abril de 2020

Um ano sem «Íntima Fracção»




















Infantis, gloriosamente ingénuos, com o coração cheio e alegremente indefeso, houve um momento em que acreditámos poder ser amados incondicionalmente. Que nenhum vento ou queda de água nos podia derrubar. Até que chegou a violência da corrente. E as estrelas, à noite, transformaram-se-nos em pó.

Hoje seria o dia em que a «Íntima Fracção» completaria 36 anos de emissões
Com o fim da «Íntima Fracção» termina uma dimensão sonora que só neste programa de Rádio se poderia encontrar. É todo um universo sensorial e único que se fecha sobre si próprio, do qual se fica arredado. A não ser, claro, que se redescubra toda essa atmosfera deste vasto território da memória sentimental, disponível em ficheiros digitais actualmente existente na Internet. Todo o acervo analógico não está acessível nem, em abono da verdade, estará. É fisicamente impossível reconvertê-lo por inteiro e disponibilizá-lo em toda a sua inteireza. Surgirão, todavia, de vez em quando aqui, algumas das emissões mais relevantes, juntando a outras entretanto já disponibilizadas digitalmente ao longo de um notável percurso.

Primeiro, foi um lento acordar no meio da noite longa e deserta. Depois, a luz que riscava o escuro e um cometa de esperança. O traço azul no futuro incandescente. Bonecas Daruma: cair sete vezes e levantar-se oito. Uma idade de ouro. O silêncio e o regresso. O vento, o exílio, o abandono, a perplexidade. Depois de passados trinta e cinco anos sobre a noite inicial, a «Íntima Fracção» luta pela sua sobrevivência, mas não a garante. Há sempre pouco para dizer, muito para escutar e tudo para sentir. Ainda e sempre à espera de um sinal, de uma resposta, da intimidade de uma esperança. 

As várias fases do programa 
No texto anterior, dito pelo autor Francisco Amaral na emissão dos 35 anos da «Íntima Fracção», o primeiro momento (um lento acordar no meio da noite longa e deserta) refere-se ao aparecimento do programa num panorama radiofónico cinzento e pouco atraente do principal canal público de radiodifusão. A «Íntima Fracção» surgiu contra corrente na Antena1, numa altura em que as emissões radiofónicas, no panorama geral a nível nacional, eram muito agitadas. Os programas mais reflexivos não eram abundantes e ainda não tinha eclodido o movimento das rádios piratas, que viriam alterar para sempre a variedade de escolhas disponíveis.
O segundo grande momento referido (a luz que riscava o escuro e um cometa de esperança) aconteceu a partir de 1986, aquando da passagem do cometa Halley. Um período frondoso do programa, a tornar-se referência e a ser contactado pelos ouvintes através de cartas.
O momento seguinte, terceiro e último nos mais de cinco anos na Antena1 (cair sete vezes e levantar-se oito) está directamente ligado ao desejo de mudança e de partida. A «Íntima Fracção» encontrava-se no limiar do desaparecimento. Surge então o mais longo e feliz período de vida do programa, por mais de 15 anos na TSF (Uma idade de ouro). Num primeiro momento ainda e só um privilégio para os ouvintes da zona centro do país a partir dos estúdios da então recém-criada RJC-Rádio Jornal do Centro/TSF-Coimbra, entre Outubro de 1989 e Setembro de 1990.
A partir de Outubro de 1990, a «Íntima Fracção» regressou à transmissão a nível nacional através da rede de emissores da TSF, que na altura se encontrava em franca expansão. A fase seguinte (O silêncio e o regresso) corresponde ao abrupto fim do programa na TSF em Setembro de 2003. O regresso deu-se na Internet ainda nesse ano. (O vento, o exílio, o abandono, a perplexidade). 
De então e até ao fim, a «Íntima Fracção» viveu em pleno na era digital, com distribuição permanente em várias plataformas, incluindo o EXPRESSO-Online, a par de transmissões regulares em várias estações de Rádio, como por exemplo a RUC, RUM, RCP e, por fim, a RADAR.
























A «Íntima Fracção» não partiu do zero. Teve um embrião. Houve um programa imediatamente antecessor, idealizado e realizado pelo mesmo autor. Intitulou-se «A Travessia do Deserto» que durou poucos meses, entre Outubro de 1983 e Março de 1984, apenas com transmissão na emissão regional da RDP-Centro, em Coimbra. Em Abril de 1984 deu-se início a uma nova grelha nacional na Antena1 e o projecto apresentado à Direcção de Programas teve luz verde para avançar, muito por força decisiva de Estrela Serrano, que defendeu a ideia de a nova grelha de programação integrar um programa com as características específicas da «Íntima Fracção».
Foi assim, neste contexto, que foi para o 'Ar' a emissão inaugural da «Íntima Fracção», na noite de Sábado para Domingo, da meia-noite às duas, 8 de Abril de 1984. Ainda sem o indicativo de abertura e fecho, o instrumental «Mar de Outubro», uma vez que o álbum «A Um Deus Desconhecido» dos Sétima Legião não tinha ainda sido editado.
Antes da curta série «A Travessia do Deserto», as influências radiofónicas mais marcantes e que viriam a fazer sentir-se com maior evidência na «Íntima Fracção» brotaram essencialmente de três fontes: «Em Órbita», na sua primeira fase, na infância e adolescência de Francisco Amaral. Programa onde só era transmitida música anglo-saxónica - uma novidade na época em Portugal -, em pleno Estado Novo, a meio da década de sessenta; Também uma cura série de programas com o actor Rui Pedro, à noite, no início dos anos 70 na Emissora Nacional. E por fim, já na primeira metade da década de 80, o programa de Miguel Esteves Cardoso «W» com a voz de João David Nunes, no então denominado FM-Estéreo da Rádio Comercial.

Nada acontece de novo no Mundo e, no entanto, nada se repete. Porque a nossa maneira de ver modifica-se e transforma o sentido dos nossos actos. 
Henrik Ibsen 

Textos (citados em itálico) premonitórios de Francisco Amaral, incluídos nas duas derradeiras emissões da «Íntima Fracção», antevendo a ultrapassagem da linha limite.

Íntima Fracção - 35 anos 
10 de Abril de 2019
Ouvir aqui

Íntima Fracção - última emissão 
17 de Abril de 2019
Ouvir aqui 



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