sexta-feira, 24 de dezembro de 2021
Guia espiritual para radialistas no Século XXI
Se és da Rádio, aplica-se a ti um princípio de Alcibíades:
”Os apaixonados assemelham-se aos que foram mordidos por uma víbora. Não querem falar do seu acidente a ninguém, excepto
àqueles que dele também já foram vítimas, por serem estes os únicos capazes de
compreender e desculpar tudo o que ousaram dizer e fazer sob o efeito das
dores.”
Vais começar a acreditar em Deus quando acabarem os milagres a que estás habituado. Deus e o Diabo estão nos detalhes. Tu estás entre os dois.
Não te queixes do azar. Quando Deus desceu à Terra para distribuir a sorte tu foste à casa de banho.
A Rádio é como a Vida. Pode dar-te quase tudo o que mais desejas, mas não no momento em que mais necessitas.
Entre a Terra e o Céu há um lugar a que chamam Éter. É aí que encontras a alma da Rádio. A maioria dos radialistas mais dedicados chegou lá, mas não por muito tempo.
A Rádio é como o planeta Terra. Ganha maior beleza à medida que nos afastamos dela.
Se tiveste uma infância feliz vais cuidar e proteger o que amas. Pessoas e objectos. O estúdio de emissão será para ti um lugar sagrado. Uma espécie de igreja. O equipamento com que fazes Rádio serão os teus filhos, netos e bisnetos.
O que esperam de ti na Rádio é o mesmo que esperas dos outros. Não gostas de ouvir um mau trabalho, pois não?
Quantas vezes ao longo da vida a Rádio te surpreendeu positivamente? Muitas, certamente. É isso que tens de fazer quando fores trabalhar.
Investe na qualidade e no conforto. Ouve muita Rádio na cama, de preferência sozinho, ou com alguém que goste de Rádio (e de cama).
Nunca aceites trabalhar de borla. Ao fazê-lo estás a criar um precedente nefasto para ti e perigoso para quem vier a seguir. Se já encontraste esse precedente, cabe a ti acabar com ele.
Se neste ano o teu vencimento é o ordenado mínimo nacional e tens uma actualização a cada quinze anos no valor médio da inflação, sabes que daqui a meio-milénio terás um salário de mil euros. Como disse o outro, “é fazer as contas”.
Se sentes que a Rádio já não te dá nada é porque já não tens nada para dar à Rádio.
Se não gostas de ouvir a tua voz na Rádio, isso é normal. Se a tua voz é, de todas, a que mais gostas de ouvir, estás perdido.
Ouvir outras rádios é importante. Leva-te a concluir que a importância do teu trabalho é muito relativa e que há sempre alguém a fazer melhor.
Não gastes tempo nem energia a desvalorizar-te. Terás sempre outros a fazerem isso por ti.
Procura sempre a verdade dos factos. Como dizia Molière, "As dúvidas são mais cruéis que as duras verdades". Dito de outra forma, mais vale a certeza de uma dúvida que a dúvida de uma certeza.
Não gostas da Música que a tua Rádio passa? Tenta mudá-la. Se não conseguires, não desistas.
Não troques um lugar na Rádio por uma piada ‘no Ar’. Não vais achar graça nenhuma.
Se estás na Rádio há décadas já contaste muitos colegas que partiram. Uns para outras veredas, outros para sempre. Deixarás de contá-los quando fores contado.
Não queiras conhecer as caras das vozes que ouves na Rádio. Vais desiludir-te.
Terás um dia positivo na Rádio quando deixares a cama feita ao sair de casa.
Sabes que o teu trabalho na Rádio correrá mal quando começas o dia a perder o autocarro.
Se não estás a conseguir implantar algum conceito importante de trabalho na tua Rádio, insiste até conseguires, mas muda de método.
De nada serve insistires com uma ideia nova junto de quem manda na Rádio. Essa pessoa vai sempre achar que é teu superior hierárquico porque é superior a ti em tudo.
Os momentos mais importantes da tua vida na Rádio é quando dizes “Não!”.
Achas que és imprescindível e insubstituível? Então faz uma visita a um qualquer cemitério. Lá estão os importantes e os irrelevantes, os notáveis e os indigentes, os fortes e os fracos, os bons e os maus, os pobres e os ricos, os altos e os baixos, os gordos e os magros, os orgulhosos e os humildes, os imprescindíveis e os insubstituíveis.
Se trabalhares muito e ganhares pouco és um activo a manter. Se ganhares mais de mil euros és um alvo a abater.
Desde que entraste na Rádio já tiveste, pelo menos, dois aumentos: um foi de trabalho, o outro foi de pobreza.
Em questões de vencimento, existe um valor remuneratório a partir do qual podes sempre comparar ao Euro o Escudo, o Dólar, a Libra e a Pataca: o zero!
Na Rádio só há dois momentos em que deves ajoelhar-te: um é para verificares se os cabos da mesa de mistura estão ligados, o outro é para apanhares a última moeda que tinhas para o café.
Não esperes da Rádio aquilo que ela nunca te poderá dar. As melhores coisas da Vida são grátis e na Rádio quase tudo tem um preço elevado.
Se trabalhas quase todos os dias na Rádio há, pelo menos, três livros que devias ler: «A Era do Vazio» e «O Império do Efémero» de Gilles Lipovetsky e «O Tempo, Esse Grande Escultor», de Marguerite Yourcenar.
Se és um veterano da Rádio ajuda o mais que puderes os teus novos colegas recém-chegados à profissão. Eles ainda não sabem que vão estar pouco tempo na Rádio.
Descobres que não tens liderança nem líderes quando ficas a saber da tua vida profissional numa qualquer conversa de corredor.
Toda a gente numa organização de trabalho precisa de liderança e de líderes, mas o que encontras é arrivismo, despotismo e chefismo. Claro que há excepções e deves segurá-las com garras, mas merecias melhor sorte (ah, é verdade... foste à casa de banho).
Quando há falta de gente para trabalhar na Rádio há sempre coordenadores a mais e coordenação a menos.
Tens de trabalhar vinte vezes mais e melhor que os amigos de quem manda para teres uma oportunidade parecida com a deles. Se fores amigo de quem manda, basta continuares a ser.
Um dos mais perversos mitos da actividade radiofónica é a de que tudo se pode fazer barato. Sabes bem que tudo tem custos e que ninguém se habitua ao que é mau.
Tentar satisfazer as necessidades da Rádio é mais difícil que satisfazer os desejos de uma ninfomaníaca.
Se puderes e quiseres paga - não necessariamente em dinheiro - para teres um programa de autor na Rádio. De outra forma não conseguirás. Tens é de ter essa oportunidade e quem ta dê.
E adaptando Godard, “Mais vale fazer um programa de Rádio na Vida do que transformar a vida num programa de Rádio.”
A Rádio é território natural para sonhadores, mas de crise em crise já só sonhas em sobreviver, o que é um pesadelo.
Não te abrigues demasiado das correntes de 'Ar' que sopram nas esquinas da vida. Os inimigos de ontem podem ser os amigos de hoje e os amigos de hoje podem ser os inimigos de amanhã.
Na Rádio o poder do som revela mais sobre ti que a força da imagem.
Sobrevoas décadas ‘no Ar’ em busca de um milagre que nunca acontece e aterras num atoleiro. "É a vida", dizem-te depois.
Não percas tempo a olhar para trás, no que já lá vai. Não podes alterar nada. O passado pode não estar morto e enterrado, mas está certamente congelado. Não o faças ressurgir. É inútil. Vive pacificamente o presente. É só esse o tempo em que estás. E não te apoquentes com o futuro. Ele não demorará a chegar.
Uma música ilustrou o teu início na Rádio, outra ilustrará o fim. Como em todas as dimensões da vida, seja no amor ou no trabalho, só há uma maneira de sair bem. É sair completamente.
Ver também: Guia de sobrevivência para radialistas no século XXI