segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Miss 70













«Miss Tapes» completou, por estes dias, dois anos. Dois anos de, tal como refere o autor Hugo Pinto: Muitas interrupções, desmaios e devaneios depois, chega-se à edição 69 não sem algum espanto. Mas nem tanto. Afinal, a música nunca acaba. Teremos sempre o silêncio.

Em «Miss Tapes» o bom gosto e a qualidade estética imperam. As arquitecturas sonoras estão nos antípodas do que podemos encontrar hoje nas estações de rádio portuguesas. É, para já por isso, uma alternativa séria e segura para quem não quer ficar a dormir na forma anestesiante – leia-se: lavagem cerebral – a que os ouvintes hoje em dia estão sujeitos.
Em 2006, foram aqui publicadas entrevistas a outros podcasters/radialistas/bloggers. E, do elenco fundador da recentemente inaugurada «Irmandade do Éter» faltavam Hugo Pinto e Zito C. O autor de «bitsounds» também aqui estará no final deste mês, em entrevista, por ocasião do também segundo aniversário de edições. Mas agora, Hugo Pinto, autor de «Miss Tapes» que chegou agora à edição número 70.
Nesta entrevista, repetem-se questões levantadas aos anteriores podcasters a que a «Rádio Crítica» deu voz. Repetem-se – por coincidência ou não – algumas das mesmas inquietações e lamentos, dúvidas e incertezas, esperanças e desejos. Do podcast à música, da Rádio à vida.

A proposta é a mesma: quadros largos e profundos, esculturas com expressão e detalhe. Filmes mudos e musicais. Uma banda sonora quotidiana para uma vida real, surreal ou impossível. Um movimento orquestrado. Na noite, de dia. Ao entardecer.


Entrevista a HUGO PINTO

Quando aderiste ao Podcast? Como surgiu a ideia?

Aderi ao Podcast, como utilizador, em Novembro de 2006. A ideia surgiu devido à facilidade que hoje existe em podermos publicar e partilhar muito do que, também com extrema facilidade de meios, podemos produzir apenas com um computador ligado à Internet. Neste caso, podcasts musicais.


Achas que o podcast é uma ameaça à rádio tradicional ou é apenas uma mais valia como foi o aparecimento da Internet?

A maior ameaça à Rádio tradicional é a tradição. Ou seja, é a própria Rádio. E o mesmo se pode dizer relativamente à Imprensa ou à Televisão. A natureza destes meios implica uma dialéctica com a tecnologia e o progresso. Neste sentido, a Rádio e os outros meios considerados "tradicionais" devem saber integrar e tirar partido das extensões que a evolução proporciona. O vídeo não matou a Rádio, mas a Rádio mudou. Com o aparecimento da Internet aconteceram novas transformações. É assim que deve ser. Depois, é necessário ter em conta que na Rádio, na Imprensa e na Televisão trabalham profissionais, pessoas que dedicaram a vida a estudar o meio e a melhorar práticas comunicativas. Há uma sistematização do saber, um acumular – algo que os novos meios ainda não têm. Lá chegarão.


Como vês o panorama actual das rádios em Portugal?

Vivo fora de Portugal desde 2005, e o conhecimento que tenho do panorama actual advém das visitas periódicas que faço desde então. Pelo que me vou apercebendo, pouco mudou desde 2003 ou 2004. E isso, para mim, é um mau sinal. Em 2003, a TSF sofreu – e aqui sofreu tem um sentido literal – uma reestruturação que, entre outras coisas, apagou do éter nacional o melhor programa musical de Rádio dos últimos anos. Falo, obviamente, da «Íntima Fracção», de Francisco Amaral. Mais recentemente, também o António Sérgio perdeu a possibilidade de ser ouvido em todo o país. Antes disto, já tinham perecido rádios como a XFM ou a Voxx, dois projectos realmente alternativos. Os autores, aqueles que ouvem e fazem ouvir, têm cada vez menos espaço. Sobram as rádios locais, sendo que nas grandes áreas urbanas a dimensão local pode significar uma grande audiência.


As playlists são um mal necessário? Isto é, um mal necessário para as rádios e para a viabilidade económica por via das audiências?

Presumindo que a pergunta se refere às playlists que parecem ditadas por autómatos, diria que as playlists são um mal, ponto. A Rádio teve sempre um papel de agente divulgador musical. É óbvio que têm que haver critérios para a selecção musical, mas esses critérios deveriam ser definidos com uma lógica de promoção da diversidade. Há imensa música dita popular ou de cariz comercial de elevada qualidade. E sublinho apenas que há imensa, já que a qualidade e os gostos se discutem, e muito.


O que pensas sobre a actual lei das quotas de música portuguesa na Rádio?

A ideia, em si mesma, é triste. A obrigação não deveria ser um critério para a escolha das músicas que passam ou não na Rádio.


A música portuguesa ou em português está fora das «Miss Tapes»? Alguma razão especial para isso ou é mera questão estética?

Não está fora. Passo só aquilo que conheço e gosto. Assim de repente, acho que apenas passaram nas «Miss Tapes» três grupos portugueses: Wordsong, Dead Combo e Fé de Sábio.


Voltando ao podcast: até onde achas que vai ter este fenómeno?

Já foi. Há inúmeros casos de sucesso à escala global de diferentes géneros de podcasts. Num certo sentido, vão mais longe do que muitos (a maioria) dos órgãos de comunicação dos meios "tradicionais" jamais poderão ir.


O podcast é a salvação para os autores?

Num cenário em que a Rádio não tem espaço para os autores, acho que o podcast é um meio perfeitamente adequado a que possam continuar a desenvolver o seu trabalho e a partilhá-lo.


Gostarias que as edições "Miss Tapes" encontrassem espaço numa rádio?

Gostaria a Rádio de encontrar um espaço para as Miss Tapes?


És ouvinte de rádio? Quando começaste a ouvir e o quê?

Era um ouvinte ocasional, em Portugal. Além dos serviços informativos e, às vezes por necessidade, dos relatos do futebol, pouco mais ouvia nas antenas nacionais. No início dos anos 90 ouvia esporadicamente o «Som da Frente», do António Sérgio, na Rádio Comercial. Mas a verdadeira experiência de ouvir Rádio começou com a «Íntima Fracção», em meados dessa década. Nunca mais ouvi nada assim; não só mudou a minha forma de ouvir música como também mudou a forma de relacionar várias referências (música, literatura, cinema). E, claro, mudou a minha percepção da Rádio, de uma certa ideia da Rádio.


Chegaste a ser ouvinte das Rádios piratas em Portugal? Se sim, tens saudades desses tempos?

Era demasiado jovem nessa altura. Passava mais tempo a desarrumar os vinis lá de casa.


Em tua opinião, qual seria/será a saída ou a salvação para a actual rádio tradicional?

Acompanhar os tempos.


Tens tido bom feedback de «Miss Tapes» através da Internet e do Podcast?

Não tenho tido muito feedback, mas aquele que tem havido é bom e sabe ainda melhor. As poucas mensagens que me chegam dão para perceber que há pessoas que acompanham o que publico e que o fazem por sentirem as «Miss Tapes» como uma boa companhia. E tenho que agradecer o apoio constante de uns quantos indefectíveis desde o início, nomeadamente tu, Francisco Mateus, e o Francisco Amaral.


Incomoda-te ou satisfaz-te pensar que as «Miss Tapes» são uma extensão e magnífica reinvenção da «Íntima Fracção», como o próprio autor Francisco Amaral declarou publicamente?

É uma honra... Tenho pelo trabalho do Francisco Amaral uma admiração profunda e nunca escondi isso nas «Miss Tapes». Há muitas músicas que ouvi pela primeira vez na «Íntima Fracção» e que para mim hão-de ter sempre essa marca. Utilizo-as com frequência como se fosse essa a minha forma de prestar homenagem. O facto de o Francisco Amaral considerar as «Miss Tapes» "uma extensão e magnífica reinvenção da Íntima Fracção" é algo que me enche de orgulho. Uma vez disse-lhe uma frase que li algures; reza assim: "pouco respeito se tem por um mestre quando se fica seu aluno para sempre." Tentarei sempre procurar a minha voz, o meu tom. Mas a verdade é que nunca me libertarei da influência da IF. O Francisco Amaral, com muito custo e um talento incomensurável, construiu um caminho que eu só mais tarde vim a trilhar, a seguir. A forma que tenho de não faltar ao respeito a esse trabalho é, de algum modo, dar um sentido e consequências a eventuais desvios que consiga iniciar.


Enquanto ouvinte regular de «Miss Tapes» desde a primeira edição, encontro nas tuas composições uma grande dor... chamar-lhe-ia – que grande atrevimento o meu! – uma dor de alma. As «Miss Tapes» são um reflexo directo da tua vida pessoal?

Antes de tudo, as «Miss Tapes» são o reflexo dos meus gostos musicais. Sendo que a música foi sempre uma parte essencial da minha vida, não me parece forçado dizer que, consequentemente, sejam esse reflexo directo. E é verdade que procuro que cada edição das «Miss Tapes» tenha uma marca de água, algo que a torne distinta de outros podcasts ou programas de rádio. Acho que é aqui que entra o toque pessoal, por assim dizer. As músicas que passam nas «Miss Tapes» não obedecem a critérios como a novidade ou os elogios da crítica da imprensa especializada. Não há limites de épocas ou géneros nas «Miss Tapes», mas procuro um fio condutor entre as músicas, um sentimento comum, uma ambiência, uma ideia ou uma emoção. Gosto de pensar nas «Miss Tapes» como bandas sonoras, histórias com vários ou nenhum personagem, lugares próximos e lugares distantes, com sentimentos, risos e lamentos, com silêncios, explosões. Emoções. Por vezes acompanham o que sinto, outras tentam combatê-lo.


Já pensaste em dar voz – viva voz – às edições de «Miss Tapes»?
Fazer a apresentação do alinhamento, por exemplo, como se fosse um programa de Rádio?

As «Miss Tapes» não têm a minha voz, em primeiro lugar, devido a questões técnicas. Se tivessem a minha voz, seria apenas para, no final de cada edição, enumerar os nomes dos artistas que se ouviram. Again, tal como o Francisco Amaral fazia a apresentação do alinhamento quando a IF passava na Rádio. Perfect.


Os inícios das edições de «Miss Tapes» são sempre através de um intróito, um pequeno extracto, um pré-interlúdio. São, em minha opinião, grandes começos. Uma antecâmara para o que depois vem. São profundamente intencionais estes cuidados com os inícios de cada edição?

Obrigado. Tenho cuidados profundamente intencionais, para usar a tua expressão, com todos os momentos das «Miss Tapes», mas há, de facto, uma atenção especial dada aos inícios. É a partir dali que defino a ambiência, o registo, o som. Todas as «Miss Tapes» nascem a partir de uma música particular. Raramente essa música é a primeira a ouvir-se e as introduções servem para fazer a apresentação dessa música – preparam o caminho. São como que variações sonoras e musicais do "era uma vez".








Mais sobre Hugo Pinto e «Miss Tapes» na «Rádio Crítica»:
Há vida na Internet 03 Novembro 2006
Parabéns, Miss 09 Novembro 2007
A Miss está de volta 30 Abril 2008



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